sexta-feira, 19 de agosto de 2011

João Cortesão evoca Domingos Barroca, histórico forcado do Grupo de Lisboa, falecido na última semana

Domingos Barroca, à direita, com Nuno Salvação Barreto e José Pedro Faro
Foto D.R.
A rabejar, numa pega de cernelha com outro grande nome do Grupo de Lisboa: Horácio Lopes
Foto C. Brito/Arquivo



Amigo Domingos Barroca,
Quis o destino levar-te bem cedo, da mesma maneira que te marcou para toda a vida naquela corrida no Campo Pequeno.
Não tinhas inimigos e, como forcado, ou te admiravam muito ou muitíssimo.
Foste forcado de caras, ajuda, rabejador e cernelheiro - e em qualquer destas posições dentro do grupo foste extraordinário. Não se pode ser mais completo.
Tive o privilégio de me fardar contigo e de ser teu amigo, e na altura em que sofreste o acidente tinhas uma seara de melão pegada com uma de tomate que eu fazia por conta da casa Ortigão Costa e nessa época convivíamos diariamente e tive ocasião de calibrar os projectos que tinhas para o futuro e que se perderam nessa noite.
O tempo que passaste em coma profundo, durante o qual todo o grupo ou quase ia ao final da tarde, de romagem ao Hospital de S. José antes de seres transferido para outro hospital, foi um tempo de angústia e os momentos que passávamos com o teu cabo e padrinho Nuno Salvação Barreto à espera que o Prof. Vasconcellos Marques fizesse de viva voz o ponto da situação, mordiam cá dentro.
Quando fui para o Ultramar não disse aos meus pais que ia, mas fui contigo e com o teu primo Zé Eugénio a Coimbra despedir-me, sem que os meus pais pressentissem que embarcava dois dias depois. Já no regresso e atingido o cimo da ladeira do Vale do Inferno, olhei para trás, vi Coimbra ao longe e comecei a chorar. Acalmaste-me então com uma palmada de carinho na cara que me abriu o lábio. Só tu meu caro amigo...
Ouvir-te falar dos forcados do teu tempo dava a ideia que todos eram melhores que tu.
A satisfação de pegar só por pegar era em ti nítida e tinha a força da raça.
Para ti pegar em praças importantes de França, de Espanha ou numa desmontável dum canto recôndito do nosso país tinha a mesma importância. A tua humildade e singeleza faziam de ti um caso único num mundo onde as vaidades são naturais.
Nascido duma família de Campinos, a forma como te referias às lides de campo e o valor que lhes davas, ultrapassava a visão vulgar de quem as aprecia, mas não as sente por não as conhecer como tu conhecias.
Perante a situação em que ficaste depois da célebre colhida no Campo Pequeno (anos 70), ultrapassaste sempre o desespero que seria natural, porém, seguiste o destino com frieza e com a coragem e naturalidade dos homens grandes.
Disse um dia Georges Bernanos: " Para encontrar a esperança é necessário ir além do desespero, porque quando chegamos ao fim da noite, encontraremos a Aurora".
É nessa Aurora do além, sem os condicionalismos de um mundo cão, que quero encontrar-te um dia, mas antes, escrevo-te esta carta - p'ra que a terra não esqueça!