segunda-feira, 1 de março de 2010

A história da minha prisão


Miguel Alvarenga - Pensei duas (mais) vezes antes de escrever esta história. Mas se eu me pelo por contar histórias dos outros, ia agora esconder a minha? E se tenho a consciência tranquila de que não cometi nenhum crime grave, ia ocultar dos leitores e dos amigos que sempre me foram fiéis uma história que se está a passar? Não, de modo algum. Aqui vai.
Estou desde o passado dia 27 de Fevereiro a cumprir no Estabelecimento Prisional do Linhó (Sintra) uma pena a que fui condenado – por culpa minha e só minha. Desleixo meu, foi o que foi. Assumo.
Há três anos escrevi (nem fui eu que escrevi, mas jamais denunciei o verdadeiro autor do texto) uma peça que implicava o campeão olímpico Carlos Pinto (equitação) numa cena de pancadaria num picadeiro da Margem Sul. Reconheço que fui enganado por quem me contou a história e tinha como único objectivo valorizar a sua posição em França no negócio de cavalos, procurando atingir a do visado (Pinto). Quando isto passar, e também não é por muito tempo, contarei toda a verdade e chamarei os verdadeiros bois pelos nomes, com fotos, documentos e tudo que tenho em meu poder.
Apesar de, poucas edições depois, ter publicado, com o mesmo espaço e o mesmo impacto, um desmentido da notícia, apresentando desculpas a Carlos Pinto, não me livrei de um processo por este movido em tribunal.
E o pior foi que, quando fui notificado da acusação, nem sequer a levei ao meu advogado, Dr. João Camacho. Guardei-a numa gaveta. Resultado: houve julgamento e não comnpareci. À revelia, acabei condenado a nove meses de cadeia efectiva. Só fui ter com o meu advogado, aflito, ó tio, ó tio, no dia em que me notificaram da condenação. Nove meses dentro? Livra, credo, cruzes, canhoto!
Recorremos para o Tribunal da Relação, que ma safou dos nove meses de prisão efectiva, substituindo-os por períodos de fim-de-semana na cadeia. É um regime novo, denominado Prisão em Dias Livres, que obriga os reclusos a passarem apenas o fim-de-semana detidos, sem prejuízo da sua vida familiar e profissional.
Uns cumprem prazos de 48 horas, entram à sexta ao final do dia e saem ao domingo ou na segunda de manhã. A mim tocaram-me períodos de 36 horas, entro às 9 da manhã de sábado e saio às 9 da noite de domingo.
Recorremos depois para o Supremo Tribunal de Justiça, que confirmou a pena dos fins-de-semana. Já não foi mau de todo.
Agora vou explicar como é.
No primeiro dia, ia meio angustiado. Sabia lá onde ia passar o fim-de-semana. A Cadeia do Linhó é um estabelecimento para condenados por penas graves. Iria ficar no meio deles?
Afinal aquilo é uma coisa diferente. Os reclusos em regime de PDL (Prisão em Dias Livres) ficam no exterior da cadeia, num pavilhão que faz lembrar a casa do “Big Brother”. Um salão enorme com cerca de 100 metros quadrados, mesas, cadeiras, jornais (levo imensos), televisão com todos os canais da Meo, micro-ondas para aquecer a comida que se pode trazer de casa (ou comer a da cadeia, que não é nada má) e dez quartos em forma de u, cada qual albergando quatro camas, também com televisão. É um regime de semi-prisão em que uma pessoa não se sente presa. Não há grades. Pode-se vir à rua, ao jardim. Pode-se fumar. Faz-se o que se quer, dentro daquilo que se pode fazer. Pode-se comprar café, bebidas (alcoólicas é que não), comida e tabaco num bar. Ninguém nos fecha nos quartos, podemos entrar e sair deles quando quisermos, podemos jogar às cartas, ao dominó e até tem uma mesa de matraquilhos onde nem é preciso inserir moeda para jogar. Não sou muito adepto, mas joguei no primeiro dia. Uns jogam mesmo à bola, mas isso nunca foi para mim…
Podemos deitar-nos e levantarmo-nos à hora que quisermos. E há uma cabine telefónica da PT, onde podemos telefonar para quem quisermos e à hora que quisermos, desde que munidos de um cartão daqueles que se compram em qualquer lado e servem para as cabines normais da rua. Levo imensos cartões para poder falar com toda a gente que me apetece. Claro que telemóvel não se pode usar. Fica na portaria, desligado e devolvem-no na hora de sair.
No primeiro dia almocei frango com esparguete e jantei salsichas com ovos estrelados e arroz. No segundo dia, não almocei porque preferi dormir (estava com uma carrada de sono dos diabos), comi só depois uma valente sopa de legumes. Jantei alheira de Mirandela outra vez com ovo estrelado e arroz. Bem confeccionada a comida e sem razões de queixa. Está-se bem, garanto-vos.
O almoço é ao meio-dia e picos e o jantar às seis e meia da tarde. Isso é que é mais chato, sempre fui de jantar tarde. Mas pode-se guardar o pratinho e aquecer depois no micro-ondas, acabando por jantar à hora que se quiser.
No primeiro dia deitei-me às onze da noite, vinha estafado de Évora, tinha acordado às quatro da manhã para apanhar a primeira camioneta das seis, a tempo de estar no Linhó às nove. Mas, mesmo com sono, mantive-me de pé. Era o primeiro dia, o dia de me ambientar, de me sentir nesta nova casa, de conhecer melhor os meus parceiros de fim-de-semana.
A comida, repito, não é má, mas depois passo a levar, porque se pode, fiambre, queijo, paio, presunto, bolachas, etc. E livros, muitos livros, farto-me de ler e aproveito para descansar. É uma paz de espírito.
Se preferir, posso comer feijoada, dobrada ou chispalhada (já o fiz) daquelas de lata, compra-se no bar e ainda é mais barato que nos super-mercados. O café custa 30 cêntimos e é bom.
Somos trinta e poucos na casa do “Big Brother”. Estão todos ali porque foram apanhados a conduzir sem carta ou com alcóol mais que uma vez. Eu sou o único que cumpro pena pelo denominado crime de “abuso de liberdade de imprensa”. Devo ser também um dos poucos jornalistas a ter ido parar à prisão depois das “liberdades” do 25 de Abril – o que, acreditem, me enche de orgulho.
Os meus companheiros são tipos porreiros. Nada a ver com perigosos criminosos. Ninguém se mete com ninguém, ninguém gama nada a ninguém, pelo contrário, acabamos por constituir um grupo de amigos que passam o fim-de-semana juntos. No primeiro fim-de-semana, como não sabia e não levara nada, fartaram-se de me oferecer coisas que eles tinham para comer. Um dia levo-os todos a uma corrida de toiros e divertimo-nos à brava. Esperem para ver.
Julgavam que eu era mais um apanhado a guiar sem carta. Ficaram todos espantados quando lhes contei quem era e porque estava ali com eles. Arranjei logo dois amigos que têm cavalos e são aficionados da Festa. E no meu primeiro fim-de-semana até lá estava um forcado (que não conhecia) e de que não vou revelar a identidade, nem dizer a que grupo pertence. Tinha sido apanhado a conduzir com alcóol, mas cumpria o seu último fim-de-semana. Às vezes saem uns e entram novos, tal como no “Big Brother”.
Os guardas prisionais são de uma amabilidade extrema. Também se compreende. Estão a lidar com presos que entram num dia e saem no outro. Que não armam confusão nem planeiam fugas. Não é preciso.
Como todo este processo (condenação, recursos, decisões finais, etc.) se arrastava há mais de um ano, tive tempo para me ir mentalizando e mentalizando a família. Sabia que mais tarde ou mais cedo, a hora do primeiro dia havia de chegar. A Rita e os meus filhos, a Maria Ana e o Guilherme, a minha Mãe, etc. (ao meu Pai não contei, poupei-o) estavam meio apreensivos e no final reconheceram que eu estava ainda mais, mas que tive forças para lhes dar força, dizendo sempre que não custava nada a passar só uma noite lá dentro, que no domingo já estava de volta, etc. e tal. Acalmaram quando no primeiro dia, mal vi a cabine e soube que podia telefonar às horas que quisesse, lhes falei e lhes contei que o ambiente era fantástico e que não tinha muito a ver com uma prisão, era antes a casa do “Big Brother”, com a vantagem de que entrava num dia e saia no outro e os concorrentes do programa televisivo passavam lá semanas sem sair e sem ver a família.
Do meu pequeno grupo de amigos, alguns tinham conhecimento de que isto se haveria de passar mais tarde ou mais cedo. No meio taurino andavam uns zunzuns, mas hoje decidi contar-vos a história toda – evitando especulações.
Podemos levar rádio, mas não é preciso porque temos televisão. E podemos levar quinze euros em dinheiro. No primeiro fim-de-semana, gastei 6 num cartão telefónico e vários 30 cêntimos em cafés, mais nada. Está-se bem.
Há uma casa de banho enorme, estilo balneário, com vários duches (água a ferver) e tudo.
Às nove em ponto de domingo, o guarda vem abrir a porta aos que saem naquela hora e eu sou um deles. Outros sairam antes e outros saem depois, alguns ficam ainda para segunda-feira porque cumprem períodos mais dilatados de 48 horas. Passamos pela portaria e recolhemos os nossos haveres, guardados num saco. Telemóvel e outras coisas que não podem entrar.
Somos revistados no dia de entrada, o que é natural e melhor para todos, não vá algum lembrar-se de levar uma arma ou coisa parecida (impensável em reclusos que vão apenas por um fim-de-semana) e fazem-nos o teste do alcóol, coisa que eu nunca tinha feito e acusou zero.
Pronto, ficam a saber. Não me telefonem (que sossego!) ao fim-de-semana, que só posso atender depois da nove da noite de domingo. É uma experiência nova, que me vai valorizar ainda mais, acredito. E que serve de lição para a próxima não ser estúpido, nem desleixado e levar logo ao meu advogado os papéis que me forem entregues…
Não recomendo a ninguém, por razões óbvias. Há pessoas mais piegas que eu, eu sou um herói e um valente, fui sempre. Modéstia àparte, claro. Fui desleixado, deixei andar e tramei-me. Às vezes, confesso, dou importância a coisas que a não têm e não dou importância a coisas que a têm. Defender-me, ir a tribunal num processo, foi uma delas. Deixei andar. E por isso…
Quanto às touradas, vou estar uns fins-de-semana sem ir, mas também isso já se passava antes. Cada vez vou menos, cada vez tenho menos paciência para ver mais do mesmo…
Lá para o início do Verão estou de volta aos fins-de-semana às praças. Por agora, descanso e leio, que me dá um jeitão enorme. E não me custa nada. Entro às nove da manhã de sábado e o tempo, por mais devagar que passe, acaba por passar a correr. Domingo à noite já estou a jantar em casa e a ouvir no computador o programa do Mourato e do Hugo.
Não é tão mau como isso. É bem melhor do que eu imaginava. Tenho novos amigos e experimento uma nova sensação. Não se dá por isso que se está preso. É mesmo como se estivessemos no “Big Brother”. E acaba por ser só uma noite.
Além disso e depois de tantos processos desde os tempos de “A Rua”, “O Diabo”, “O Crime” e “O Título”, ainda não tinha perdido a esperança (de verdade) de um dia ir mesmo dentro. Aconteceu por fim!
Já agora e a partir desta semana, publicarei em todos os números do “Farpas” o diário da minha prisão. Há sempre coisas novas e giras. E vou partilhar convosco este período novo – e diferente! - da minha vida.

Foto João Dinis

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