segunda-feira, 24 de agosto de 2009

A estupidez dos acidentes evitáveis


O Ninã (João Salvação) ficou cego de um olho por causa de um ferro curto.
Fiz um brevíssimo exercício de memória e contei os casos que eu conheço e que se devem aos ferros: as trágicas mortes do António Santos e do Pedro Bela-Corça e ainda o João Pedro Bolota, o Eliseu, o Carlos Ramalhinho, o Zé Miguel, o Pedro Laranjeira e agora o Ninã, todos cegos de uma vista para o resto da vida por causa dos ferros. Imagino que existam vários outros que eu não conheço.
São também incontáveis os forcados que têm cortes na cara, nas mãos, nos braços, no peito e nas pernas por causa dos ferros, alguns deles que se salvaram quase por milagre. Lembro-me por exemplo do caso de um forcado do Aposento da Chamusca que foi de Albufeira até ao Hospital de Faro com um ferro curto espetado no seu peito na zona do coração, o caso do Guilherme Borba que cortado debaixo do braço só não morreu porque estava no Campo Pequeno e chegou a tempo a um grande Hospital, ou ainda o caso recente de um forcado que ficou com a mão cravada num ferro que por sua vez estava cravado no toiro, tendo por isso ficado agarrado ao toiro por uma farpa.
A questão das bandarilhas tem de ser colocada de um ponto de vista pragmático e tem de ser resolvida de uma vez por todas - a bem (com o consenso de todos) ou a mal (por imposição), sobretudo em benefício dos que actualmente são mais prejudicados que são os Forcados.
É incompreensível que a questão das bandarilhas ainda se mantenha quando já existe parte da solução (para os ferros curtos) há bastante tempo (as chamadas bandarilhas à espanhola).
Partindo de um ponto prévio no qual todos estamos de acordo, que é a necessidade de haver bandarilhas para que a Corrida de Toiros exista na sua plenitude, existem vários pontos de vista sobre o tema:
- o ponto de vista do castigo – colocado por toureiros e até alguns forcados que afirmam que os tradicionais ferros curtos, por uma questão de Fisica, castigam mais o toiro;- o ponto de vista técnico – colocado sobretudo por toureiros e seus apoderados pois é mais fácil deixar um ferro dos actuais do que uma bandarilha à espanhola;- o ponto de vista económico – colocado pelas empresas com receio de que uma nova solução seja mais cara que a actual;- o ponto de vista estético – colocado pelos que defendem que os tradicionais ferros curtos ficam mais bonitos depois de colocados;- o ponto de vista da integridade física – colocado pelos que correm o risco de sofrer lesões graves;
Por questões da ordem da Física os tradicionais ferros curtos, nos quais a farpa está inserida na madeira, apresentam um duplo perigo: por um lado tendem, sobretudo quando não são colocados verticalmente, a virar a farpa para fora devido ao balanço que o peso da madeira provoca e, por outro lado, quando ficam bem espetados tornam-se perigosos pelo impacto que podem provocar quer aos cavaleiros quer aos forcados.
A titulo de exemplo vejam-se diferentes casos: o Ninã, o Pedro Laranjeira e ainda mais tragicamente o António Santos sofreram os seus acidentes embatendo contra o pau de um ferro curto bem cravado que, por ser uma peça única, fez apoio no dorso do toiro tornando-se um obstáculo virado contra a cara destes forcados. Já o Carlos Ramalhinho cegou ao cortar a sua vista numa farpa que estava virada para fora e ainda mais tragicamente o Pedro Bela-Corça morreu depois de se ter espetado na zona do abdomen também num ferro que ficou virado para fora.
Estes exemplos servem para mostrar que o perigo dos ferros curtos actuais existe quer fiquem melhor ou pior cravados.Também por questões da ordem da Física as Bandarilhas à espanhola resolvem estes problemas. Estas bandarilhas têm um sistema de mola junto à farpa, mola esta que se solta aquando da cravagem soltando a zona da farpa, que fica cravada, da zona da madeira, que fica presa à anterior por um pequeníssimo fio de cordel. Naturalmente o balanço da madeira continua a existir mas a força que é efectuada pelo peso já não é no sentido de revirar a farpa mas sim no sentido de a puxar, coisa que não tem problema algum pois o pequeno arpão da farpa impede a sua saída. Por outro lado também deixa de se colocar a questão do embate contra uma bandarilha que fique a fazer apoio no dorso do toiro pois a madeira está desligada da farpa não tendo um apoio na base que a possa tornar perigosa.
Como curiosidade é interessante saber como apareceram as bandarilhas à espanhola: Em Espanha no segundo tercio colocam-se bandarilhas curtas. Até há poucos anos essas bandarilhas eram iguais aos nossos ferros curtos (somente um pouco mais pequenas em comprimento) ou seja, uma farpa inserida na madeira, mas acontece que o balanço dessas bandarilhas incomodava os toureiros por um lado porque lhes batia quando o toiro passava, por outro porque descompunha a muleta. Nada disto fez com que se alterasse o sistema das bandarilhas até que um dia um toureiro figura levou com a ponta do pau duma bandarilha num olho quase cegando. O que sucedeu foi que este toureiro, que por ser figura era dos que mandava, obrigou a que nas suas lides as bandarilhas fossem substituídas por outras com um sistema diferente que diminuía drasticamente os perigos e incómodos das anteriores. Depois desse toureiro quase todos os outros aderiram e o problema foi resolvido.
Também é curioso ver o que sucedeu no toureio a cavalo pois, como sabemos, alguns toureiros só colocam bandarilhas à espanhola e para isso nem sequer dão cavaco aos seus colegas ou à IGAC ou a quem quer que seja. E fazem-no porquê? Porque um dia iam ficando cegos ao embater contra um curto e a partir desse dia preferiram trocar de bandarilhas e defender a sua integridade física.
Numa discussão devem ser ouvidos todos os pontos de vista e devem ganhar os que forem mais relevantes. No caso dos ferros curtos é óbvio que o argumento mais relevante é o da integridade física e este argumento deve levar a uma modificação dos actuais ferros para bandarilhas à espanhola.
Não deixa de ser estranho que isto ainda não tenha sucedido mas este facto é demonstrativo dos Grupos de Forcados que temos e da nossa própria Festa. Uma Festa na qual a maioria dos Grupos de Forcados prefere somar uma corrida em quaisquer condições a rejeitá-la na defesa da sua dignidade. Na qual a maioria dos Grupos de Forcados prefere submeter-se aos ditames dos empresários mais mediáticos do que afirmar as suas posições acreditando na justeza das mesmas independentemente das consequências que estas tenham. Uma Festa na qual a maioria dos Cabos dos Grupos de Forcados não está verdadeiramente disposto a enfrentar o sistema instituído (pelas empresas, pelos toureiros e pela própria IGAC) para ter Ambulâncias Medicalizadas e uma Equipa de Emergência Médica nas Corridas, para ter Trincheiras sem estribos de cimento, para ter Bandarilhas à espanhola ou para ter um Seguro.
Existindo a ANGF, que congrega mais de 95% dos Grupos de Forcados existentes e a totalidade dos Grupos de prestigio, a verdade é só uma: a questão das bandarilhas, tal como a das ambulâncias, ou a dos estribos das trincheiras e até mesmo a questão dos seguros, ainda não se resolveu porque os Cabos dos Grupos de Forcados não quiseram.
A força dos Grupos de Forcados está no simples facto da Festa em Portugal não poder subsistir sem eles, portanto é fácil perceber que no dia em que os Forcados decidirem que só pegam com bandarilhas à espanhola e que, sem elas, nenhum Grupo actuará, é exactamente o mesmo dia em que esse problema fica resolvido. O mesmo sucede com as ambulâncias medicalizadas e com as restantes questões referidas.
Claro que existirão sempre uns parvos que vão achar que estas decisões vão contra o amadorismo e que o que é bonito é os forcados morrerem, ficarem cegos e aleijados por causa destas coisas que são perfeitamente evitáveis. São na sua maioria os mesmos parvos que por 2 horas de protagonismo se fardam na selecção do farpas usando jaquetas de Grupos onde nunca pegaram ou usando as dos seus Grupos mas sem terem pedido autorização aos seus Cabos como se deve fazer quando se vai a uma selecção, e pondo a pegar outros parvos de bandos que para aí andam que necessitam de se vestir de forcados para serem alguém na vida. Também existirão uns empresários armados em parvos que vão ameaçar os Grupos de nunca mais lhes dar corridas para pegarem. E ainda existirão outro tipo de parvos que vão dizer que os Forcados hoje em dia já não são como eram e que dantes é que era bom.Mas que importa a opinião destes parvos quando comparada com a vida do António Santos e do Pedro Bela-Corça, ou com a vista do Ninã, do Zé Miguel, do Pedro Laranjeira, do João Pedro Bolota, do Carlos Ramalhinho ou do Eliseu?
Eu já não pego e tive a sorte de não sofrer nenhuma lesão grave a não ser as pernas e os braços partidos que são costume em quem se propõe fazer as tentativas necessárias para pegar um toiro. Quando chefiei o Grupo de Vila Franca fiz a minha parte nesta luta ao ser um dos impulsionadores e fundadores da Associação Nacional de Grupos de Forcados. Agora é tempo dos que pegam e sobretudo dos que chefiam os Grupos de se deixarem de merdas e tomarem decisões que são importantes para quem pisa uma arena, sitio onde o perigo deve somente ser o Toiro. Esse sim deve ser perigoso, deve causar emoção, tem o direito de aleijar quem se põe diante dele. Tudo o resto são perigos estúpidos que é uma irresponsabilidade não evitar.

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